Desde 2011, o Mundo Árabe foi sacudido por uma série de revoltas populares que levaram à deposição de regimes autocráticos e corruptos, alguns no poder há mais de trinta anos, como nos casos do Egito, Iêmen, Líbia e Tunísia. Em outros países árabes, como o Marrocos, a Argélia e a Jordânia, houve reformas constitucionais e o fim do Estado de Emergência, em atenção às manifestações populares, pois tanto o Rei Mohamed VI do Marrocos, quanto o Presidente argelino Abdelaziz Boutefika, bem como o Rei Abdullah II da Jordânia, perceberam que para se manterem no poder e garantirem a estabilidade político-social de seus países, não podiam mais fazer ouvidos de mercador ao clamor popular por mais liberdade e democracia, sempre lembrando que a estrutura social e de distribuição de renda, além da política, nos países islâmicos pode ser considerada feudal, inclusive com amplo apoio do clero muçulmano, bastante avesso a qualquer tipo de reforma que limite o seu extraordinário poder.
A Primavera Árabe, expressão que passou a denominar essas revoltas, que inclusive, como no caso egípcio, ocorreu sem um líder e através das redes sociais, esta moderníssima ferramenta de comunicação que nem os truculentos chineses conseguem censurar; finalmente chegou à Síria, país governado com mão de ferro pelo Presidente Bashar al Assad.
Para que possamos compreender os últimos acontecimentos nesse país e sabermos quem é Bashar al Assad, faz-se necessário um breve retrospecto histórico sírio, que poderá mostrar com mais clareza, a profundidade das feridas abertas nesses mais de quarenta anos de ditadura.
A Síria, bem como o Líbano, é um dos países do Levante, que, com a derrota turca na Primeira Guerra Mundial e o conseqüente desmembramento do Império Otomano, ficou sob o jugo de um mandato francês determinado pela Liga das Nações. Quando os franceses evacuaram o país, em 1946, dando-lhe a independência, após sucessivos golpes militares, a Síria entrou numa aventura política da qual se arrependeria profundamente, movida pelo panarabismo, pregado com fervor religioso pelo Presidente Egípcio Gamal Abdel Nasser, em 1958, com o apoio soviético, objetivando uma cruzada árabe para destruir Israel. Síria e Egito então se juntaram na República Árabe Unida, com capital no Cairo e que prometia progresso para ambos os povos, nas palavras do próprio Nasser, “Socialismo com Islamismo” que já recebia grandes suprimentos de armas e conselheiros militares dos “povos soviéticos amantes da paz”, para, mais uma vez atacar Israel e mais uma vez perder a guerra.
Os sírios se sentiam como que anexados pelo Egito, as promessas e fanfarronadas de Nasser e do General Egípcio Amir Amin, que levaram a mais uma humilhante derrota, a pobreza e a desilusão reinantes no país, além das diferentes composições sociais, legislativas, e das classes políticas de cada uma das partes, sem contar a pressão dos nacionalistas locais, levaram a termo a malfadada república, que acabou de vez com um golpe militar sírio, em 28 de setembro de 1961.
Depois de um breve período de instabilidade política, em 1963 o Partido Baath toma o poder, nele permanecendo mesmo após os golpes de estado de 1966 e 1970, este último que levou à presidência Hafez al Assad, que manteve o unipartidarismo, e criou um Estado Policial que mostrou toda a sua vilania no massacre de Hama, durante a revolta sunita de
Com a morte de Hafez, em 17 de julho de 2000, Bashar al Assad assume o poder, mantendo a mesma linha política e econômica de seu pai, contudo, a deterioração da economia síria, 25% de taxa de desemprego, queda nos subsídios governamentais para a agricultura, aumento do custo de vida paralelo à queda do padrão de vida do povo sírio, além da falta das garantias constitucionais ao cidadão (o país ficou em estado de exceção desde 1963 até 2011), prisões e torturas de pessoas; começaram a criar um sentimento de ódio e revolta contra Assad que eclodiu em 26 de janeiro de 2011, com os primeiros protestos duramente reprimidos pelo governo. Por esse tempo, os grupos de oposição ao regime já se articulavam, sendo os mais notórios o Conselho Nacional da Síria, a Irmandade Muçulmana Síria e o principal deles, o Exército pela Libertação da Síria, comandado pelo coronel Riyad al Asad e formado por desertores do Exército Nacional Sírio. A ELS é o principal grupo armado de oposição ao regime e tem protagonizado verdadeiras batalhas contra as tropas de Assad. O Comitê Nacional de Coordenação para a Mudança Democrática que de início rivalizava com os outros grupos opositores, mas agora prega um trabalho conjunto de todos os grupos contrários ao regime, pela unidade nacional da Síria.
Em fevereiro do ano passado, os protestos tiveram sequência e as tropas sírias sitiaram as cidades de Daraa e Homs. Em 15 de março de 2011, o que era uma simples manifestação de descontentamento popular degenerou numa verdadeira guerra civil que já ceifou algo em torno de 30.000 vidas, causou a prisão de mais de 100.000 pessoas e a emigração de outras 150.000. A partir de 15 de julho deste ano, a Cruz Vermelha Internacional passou a classificar o conflito como Guerra Civil.
O conflito já envolve inclusive outras potências, pois os rebeldes recebem o apoio da Turquia, Arábia Saudita, Qatar, Reino Unido e Estados Unidos, dos Sunitas Iraquianos enquanto que Assad é apoiado por Rússia, herdeira da URSS no apoio às ditaduras do Oriente Médio; China, Coréia do Norte, Hezbollah, Xiitas Iraquianos, Venezuela e o Irã, todos campeões mundiais da anti-democracia, das violações dos direitos humanos, da supressão à autodeterminação dos povos e da liberdade.
O resto do que se passa, pose ser visto e ouvido nos telejornais e no restante da mídia e não nos cabe repetir. Dia após dia, semana após semana, massacre após massacre, como ocorreu no Massacre de Houla; o resultado desse odioso conflito é cada vez mais incerto, mas uma coisa já está patente: a total incompetência da ONU na mediação de conflitos de grandes proporções, pois o emissário das Nações Unidas, Kofi Annan, já jogou a toalha e se confessou incapaz de negociar um simples cessar-fogo, sequer um acordo de paz mais duradouro. A oposição síria não consegue acertar as bases de uma ação coordenada que concentre esforços e leve a uma vitória final, que ao que tudo indica, ainda está distante, apesar das significativas derrotas impostas pelo exército rebelde às tropas de Assad. Por sua vez o ditador, apesar das grandes perdas sofridas, tanto em efetivos de tropas quanto em território e apoio interno, tem seu fôlego renovado pelo apoio externo, principalmente russo e iraniano, conseguindo se manter também a custa de seus seguidores mais leais que têm plena consciência que um futuro feliz não lhes sorrirá, em caso de vitória rebelde, pois o ajuste de contas fatalmente lhes sobrevirá, principalmente por parte do povo, que não costuma esquecer e nem perdoar aqueles que foram seus algozes.
Na verdade, o fator complicador principal nessa história é a questão geopolítica, pois, na verdade, está se repetindo, numa escala menor evidentemente, o que ocorreu na Guerra Civil Espanhola, na qual as grandes potências da época mediram forças ao apoiarem um ou o outro lado; até porque o país possui uma riqueza que atrai muita atenção: o petróleo sírio, que tem no Irã o seu principal revendedor, além do país possuir grandes oleodutos que passam por seu território e cujo pedágio é uma importantíssima fonte de divisas para o governo sírio.
O Irã apóia Assad para manter seus negócios com ele e, principalmente, para atrair a Síria, país com uma posição estratégica, para uma aliança no sentido de lutar contra Israel. A Turquia, a quem não interessa uma hegemonia iraniana e que teme, com razão, uma eventual união dos persas com os iraquianos, apóia abertamente os rebeldes e está disposta, inclusive, a recorrer a uma intervenção militar direta, se os iranianos se mexerem. A Rússia, que em outubro último chegou a enviar uma frota de guerra para o mediterrâneo, prevenindo contra uma invasão da Síria por tropas estrangeiras, tradicional aliada dos Assad pai e filho, também quer manter seus privilégios econômicos, particularmente relativos à venda de armamentos e demais equipamentos militares. Aos países ocidentais nada disso interessa, e o governo de Damasco sempre foi conivente com o terrorismo internacional, principalmente com o Hezbollah e com o incentivo a toda sorte de agressões ao Mundo Ocidental.
Nessa guerra, é muito difícil prever quem perde e quem ganha, mas, ao que parece, quem certamente está perdendo é o povo sírio, que paga alto tributo em sangue para reconquistar a sua liberdade; e quem está ganhando e muito, diga-se de passagem, são os fabricantes de armas que alimentam essa que é a mais cruel de todas as guerras: a guerra entre irmãos. Do mesmo modo que no restante do mundo árabe, a grande pergunta é: O que vem a seguir? Se a vitória dos rebeldes for lograda, uma unidade entre as várias facções, que já era difícil, pode ficar impossível e se degenerar numa luta aberta pelo poder, mediante expedientes muito pouco democráticos; se Assad vencer, a repressão será tão violenta que fará corar de vergonha, qualquer Stalin ou Pol Pot, levando o país a um isolamento semelhante àquele imposto à Albânia por Enver Hoxha, por mais de 40 anos.
Apesar, vale frisar, da incerteza quanto ao futuro do conflito, a tendência, pelas últimas notícias é a queda de Assad. Contudo, embora ainda seja prematuro afirmar categoricamente que tal se dará, pelo menos a curto prazo, podemos assegurar que a costura política dos opositores do regime terá que ser feita cuidadosamente, para evitar que ocorra na Síria o que está acontecendo no Egito, onde um vácuo de poder põe em risco todas as conquistas duramente conseguidas com a Primavera Árabe.
Esperamos, com toda a sinceridade, que o povo sírio seja o único vencedor deste triste conflito.
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