(Pronunciamento na abertura da comemoração nacional da ciência e tecnologia.)
Inicio traçando um panorama da história da atuação das ciências no processo histórico de formação do Brasil como nação. Em consonância com o tema “Bicentenário da Independência: 200 Anos de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil”, abordarei em minha análise o período compreendido entre 1822 e 2022, onde os cientistas deram contribuições cruciais ao debate sobre constituição do Estado; identidade nacional; cidadania; visões sobre populações; políticas públicas de saúde e educação; projetos de criação de universidades; circulação internacional de saberes; soberania, desenvolvimento nacional, inserção do Brasil no mundo e convivência entre o atraso e a modernidade.
Em virtude da minha graduação em Física, tenho claro a importância das ciências, e da sustentabilidade da atividade científica, na resposta à crise e aos desafios contemporâneos; a persistência das desigualdades, inclusive as relacionadas ao desenvolvimento científico e tecnológico, e a questão ambiental, transversal e incontornável para todas as áreas do conhecimento.
Atravessamos um contexto atual, apesar das evidentes especificidades históricas, de crise política, econômica e institucional. A agenda de 2022, ainda largamente indefinida, prevê a reconstrução do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, destruído em incêndio em 2018, e a reinauguração do Museu do Ipiranga em São Paulo. Nos meios acadêmicos e intelectuais está presente uma enorme resistência ao sentido de comemoração, ao se esta tentar invisibilizar as crises então latentes. Que Independência, afinal, tivemos? Que cidadania fomos capazes de construir em 200 anos? - essas são algumas perguntas que norteiam o balanço inicial sobre o Bicentenário, com, a meu ver, juízos contrários ao discurso ufanista que marcou o Centenário do Brasil independente.
Cabe destacar a importante participação das ciências e dos cientistas nas disputas entre diferentes projetos de país nos últimos 200 anos. Contudo, por oportuno, focarei no desdobramento e na abordagem da ciência como produção de conhecimento multicêntrica, com ênfase em redes de comunicação, alianças, intercâmbios e hibridismo cultural; circulação de ideias, pessoas e artefatos tecnológicos; sincronias, reciprocidade e interseções. No entanto, não posso deixar de fazer menção ao ideário iluminista de crença no poder da razão, única e universal, e na função pragmática da ciência a serviço do progresso material que estava presente na política promovida pela Coroa portuguesa que fomentava a realização de atividades de pesquisa e de exploração que produzissem conhecimentos que pudessem ser úteis.
Essa política de promoção da ciência, como instrumento de intervenção na realidade brasileira, estimulou o estudo das ciências naturais entre os luso-brasileiros e caracterizou o perfil aplicado do conhecimento produzido como um traço do exercício da atividade científica existente na América Portuguesa desde o século XVIII, marcando o início do processo de institucionalização das ciências no Brasil. Muitos acreditavam que os estudos científicos deveriam servir ao progresso material e às melhorias nas condições de vida. Viam-se como sábios e homens práticos, aos quais caberia construir a felicidade com inventos e descobertas importantes para o bem-estar, a saúde e o proveito da sociedade.
Embora o surgimento da consciência nacional só tenha vindo a ocorrer posteriormente, em meados do século XIX, a pesquisa científica promovida nas últimas décadas do século XVIII foi fundamental para despertar, nos ilustrados, a ideia de pátria.
Nas primeiras décadas do século XX, as atividades científicas encontravam legitimidade por meio de sua capacidade de avaliar e solucionar problemas da sociedade brasileira. Mas, além da promoção do valor social da ciência, os cientistas buscavam mecanismos para maior profissionalização das atividades científicas no país. Inseparável deste processo é a criação da Academia Brasileira de Ciências (ABC), que esteve envolvida na implementação das universidades públicas brasileiras a partir da década de 1930, entre tantos outras contribuições.
Importante ressaltar que os cientistas defendiam o fomento institucional a pesquisas e formação em ciência básica, a criação de novos campos do conhecimento, em contexto de baixa especialização disciplinar; a exortação à realização de pesquisas sobre temas nacionais; e a definição de novas áreas de atuação pública. A ABC foi fundamental no Brasil para a emergência de um tipo especializado de profissional que se autodenominava e era reconhecido socialmente como “cientista”, quanto também para a discussão sobre o papel nacional a ser exercido pela ciência nas primeiras décadas do século XX: tratava-se de ampliar o diálogo entre os cientistas e a sociedade, e fornecer estudos e evidências científicas para a formulação de políticas públicas.
As décadas seguintes, sobretudo no contexto do pós-Segunda Guerra, foram marcadas pela convicção acerca do papel decisivo que a ciência e a tecnologia poderiam ter no processo de elevação dos níveis socioeconômicos da América Latina. No Brasil, os programas do Estado desenvolvimentista acionaram a organização profissional das ciências, bem como a estrutura educacional superior, como motores para o desenvolvimento de projetos que viabilizassem a soberania, a segurança e a autonomia nacionais (Cunha, 2007).
A Segunda Guerra Mundial também teve impactos na organização internacional da ciência. Teve início na década de 1940 por meio da construção dos grandes laboratórios de física de partículas elementares. A partir da organização da Big Science em diferentes países, “a ciência torna-se cada vez mais dependente do Estado ou de recursos financeiros que as indústrias e o setor privado aplicam em seus próprios centros de pesquisa e desenvolvimento tecnológico” (Videira, 2010, p.67).
O emprego da ciência e de alta tecnologia balizaram projetos político-econômicos em escala global. Esses projetos tinham relação com a ideia de desenvolvimento, que significava, na ocasião, o caminho que a humanidade deveria trilhar, depois das crises econômicas perpetradas por duas guerras mundiais, rumo a conquistas que caracterizariam as sociedades “avançadas”: industrialização, urbanização, modernização da agricultura, aumento da oferta de serviços sociais, altos padrões de produtividade material e elevados níveis de qualidade de vida e saúde (Cooper; Packard, 2005; Lleys, 2005).
A adoção e a promoção desses projetos, especialmente no pós-Segunda Guerra, figuraram como condições indispensáveis para vencer o “subdesenvolvimento”, cujas principais marcas seriam atraso econômico, alto crescimento populacional, desindustrialização, doenças, analfabetismo, desnutrição, fome, pobreza e prevalência de práticas agrícolas extrativistas.
É fato que, em nível de recursos orçamentários, o tratamento dado a ciência, tecnologia e inovação em nosso país sempre foi aquém da necessidade de oportunizar o Brasil de se libertar da condição de país periférico e subdesenvolvido. Orçamentos e prioridades do MCT sofreram flutuações em razão das políticas estratégicas de diferentes governos, mas, especialmente a partir de 2014, passaram a ocorrer cortes sistemáticos e crescentes no orçamento de CT&I no país. Diante dessa realidade, como enfrentar essas transformações radicais do lugar periférico que o Brasil ocupa em ciência, economia e desenvolvimento humano no mundo? Além dos 200 anos da Independência do Brasil, em 2022, teremos também os 50 anos da Conferência de Estocolmo, e a ONU planeja lançar a Década da Restauração de ecossistemas, biomas e ambientes marinhos. Como integraremos esses debates numa das piores crises científicas em dois séculos de país “independente”? Os projetos de ciência profissional, comprometida com visões de um país soberano, como vimos, estruturaram a própria história do campo científico brasileiro. Que agendas de futuro poderemos edificar com o desmonte de toda a estrutura pela qual os cientistas brasileiros lutaram arduamente por dois séculos?
É preciso renovar o conhecimento científico para a compreensão das transformações inauditas que vivenciamos. É preciso uma nova ciência, sem fronteiras entre as disciplinas, mas tampouco entre os países, em prol da solidariedade e cooperação global. A nova ciência deve carrear também reflexão crítica sobre as fronteiras entre o mundo humano e o mundo natural, do qual o Homo sapiens, afinal, também faz parte. Sem a ciência, seremos incapazes de enfrentar os tempos de mudanças radicais que temos pela frente. Em entrevista de setembro de 2020, o importante filósofo e antropólogo francês Bruno Latour chegou a declarar: “Se o Brasil achar solução para si, vai salvar o resto do mundo”.